Sobre ser a única estudante de Medicina negra

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"As cotas não estão aí apenas para reparar um erro antigo, mas sim para reparar um erro do presente. O racismo existe e abala muito sua vítima."

Em minha faculdade temos seis turmas do curso de Medicina. Em cada turma há, pelo menos, 100 alunos. Até o ano passado, éramos duas negras. Neste ano, devido as cotas concedidas pelo governo, acredito que tenhamos uns 5 negros estudando Medicina.

Em meio a tantos brancos e ricos, é comum surgirem algumas discussões. Lembro-me que no primeiro ano, uma garota me segredou: “na verdade, acho que tenho um pouco de nojo de negro”. Então, respondi que eu sou negra. Eu tenho lábios grandes, nariz achatado, cabelos crespos e um nível considerável de melanina na pele. Recebi como resposta: “Você não é negra! Você é morena!”.

Eu estudo em uma faculdade particular, mas tentei diversas vezes escolas públicas, nunca como cotista. Sempre fui contra cotas, mas sabia que havia alguma coisa errada para quase não termos negros nas universidades, de modo que nunca me manifestei acerca do assunto. Em meio a essas discussões, meus amigos comentavam que poderiam ter entrado numa pública, não fossem os cotistas roubando suas vagas. De certo modo, compreendo totalmente a angústia deles! Como vestibulando de medicina, 0,1 ponto faz muita diferença e as pontuações dos cotistas são bem mais baixas do que das vagas regulares.

Mas acontece que no dia 22 de março de 2016, uma aula mudou totalmente minha opinião sobre cotas. Em uma aula muito complicada, a professora (branca) comenta: “Eu espero que meu filho tenha algum traço de negro. Para negro é mais fácil entrar nas faculdades, por causa das cotas”. Notei certo incômodo da sala, mas não consegui encarar ninguém, sabia que receberia alguns olhares. Imediatamente, pensei: “Meu Deus, essa professora está me chamando de burra! Ela acha que para mim foi tudo muito mais fácil.”. A partir deste momento, não consegui prestar atenção em mais nada daquela matéria que é famosa por reprovar tantos alunos do terceiro ano de Medicina. O que me fez refletir: imagina uma criança ouvir frases racistas desse tipo desde os seus 7 anos de idade? Frases de preconceito velado? Eu, com meus 22 anos, maturidade e até mesmo blindada por meu status social de estudante de medicina, me perdi completamente na aula, não consegui estudar naquele dia... Imagina uma criança que cresce ouvindo isso? A criança não aprende mesmo. Não vai para frente, não entra em uma faculdade!

Desse modo, cheguei a duas conclusões:
  1. As cotas não estão aí apenas para reparar um erro antigo, mas sim para reparar um erro do presente. O racismo existe e abala muito sua vítima. Fosse fácil para um negro entrar em uma faculdade, na minha até o ano passado, não existiriam apenas 2 negros entre, pelo menos, 600 alunos (como temos muitos reprovados, o número é bem acima de 600).
  2. O status social te blinda da discriminação. Enquanto estudante de medicina, não sou vista como negra. O status de amiga, também te blinda da discriminação, se você é amiga, você não é negra, mas sim morena.
Por fim, o motivo de escrever este texto é que me preocupa o fato de as pessoas acharem que cotas facilitam as coisas (não conseguiria atingir nota para cotista em uma instituição pública de ensino). E escrevi, principalmente, para deixar claro que defini meu lado: sou a favor das cotas, pois o preconceito contra o afro realmente reduziu meu desempenho acadêmico e isso precisa ser combatido. Precisamos nos fortalecer, mas para isso, precisamos de um impulso. Creio que as cotas sejam o impulso necessário, apesar de precisarem serem revistas, de modo a fornecer maior suporte a quem usufrui dela.

* Esse é um relato real, porém devido a vários fatores, a estudante preferiu não revelar o nome.

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